Revirando
a internet, deparei-me com um conto maravilhoso, chamado "Bárbara", de
Murilo Rubião. Esse conto me fez relembrar os tempos de faculdade, das
aulas de literatura. Lembro-me que fiz uma análise psicológica de
"Bárbara" que me valeu nota máxima!
Para
quem não conhece, Murilo Rubião é considerado por muitos como o
primeiro contista do gênero fantástico em nossa literatura. Ao tratar o
irreal como se fosse real, o autor consegue atrair o leitor de tal
maneira que este vive a história em sua plenitude.
Outro
ponto característico na obra de Murilo, se não todas, é o uso de
epígrafes, o que simbolicamente já nos dá uma ideia da temática a ser
abordada na narrativa. No caso de "Bárbara", cita Provérbios XXI; 16: "O
homem que se extraviar do caminho da doutrina, terá por morada a assembléia dos
gigantes."
Para saber mais sobre Murilo Rubião, consulte:
- www.murilorubiao.com.br/
- RUBIÃO, Murilo. Literatura Comentada. ORG. SCHWARTZ, Jorge. São Paulo, Abril, 1981. O Convidado. 2ed. São Paulo, Edições Quíron, 1979.
- http://www.infoescola.com/biografias/murilo-rubiao/
Agora vamos ao conto
Bárbara
"O homem que se extraviar
do caminho da doutrina, terá por morada a assembléia dos gigante." - Provérbios, XXI; 16.
Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.
Por mais absurdo que pareça,
encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão
constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam
continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o
crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição.
Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu
lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacrifícios que
fiz para lhe contentar a mórbida mania.
Quase da mesma idade, fomos
companheiros inseparáveis na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos
casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples companheiros.
Enquanto me perdurou a natural
inconsequência da infância, não sofri com as suas esquisitices. Bárbara era
menina franzina e não fazia mal que adquirisse formas mais amplas. Assim
pensando, muito tombo levei, subindo a árvores, onde os olhos ávidos da minha
companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de passarinho. Apanhei também
algumas surras de meninos aos quais era obrigado agredir unicamente para
realizar um desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se lhe
tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as mãos e sentia-se feliz
em acariciar-me a face intumescida, como se as equimoses fossem um presente que
eu lhe tivesse dado.
Às vezes relutava em aquiescer
às suas exigências, vendo-a engordar incessantemente. Entretanto, não durava
muito a minha indecisão. Vencia-me a insistência do seu olhar, que trasformava
os mais insignificantes pedidos numa ordem formal. (Que ternura lhe vinha aos
olhos, que ar convincente o dela ao me fazer tão extravagantes solicitações!)
Houve tempo - sim, houve - em
que me fiz duro e ameacei abandoná-la ao primeiro pedido que recebesse.
Até certo ponto, minha
advertência produziu o efeito desejado. Bárbara se refugiou num mutismo
agressivo e se recusava a comer ou conversar comigo. Fugia à minha presença,
escondendo-se no quintal e contaminava o ambiente com uma tristeza que me
angustiava. Definhava-lhe o corpo, enquanto lhe crescia assustadoramente o
ventre.
Desconfiado de que a ausência
de pedidos em minha mulher poderia favorecer uma nova espécie de fenômeno,
apavorei-me. O médico me tranquilizou. Aquela barriga imensa prenunciava apenas
um filho.
Ingênuas
esperanças fizeram-me acreditar que o nascimento da criança eliminasse de vez
as estranhas manias de Bárbara. E suspeitando que a sua magreza e palidez
fossem prenúncio de grave moléstia, tive medo que, adoecendo, lhe morresse o
filho no ventre. Antes que tal acontecesse, lhe implorei que pedisse algo.
Pediu o oceano.
Não fiz nenhuma objeção e
embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar,
atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que a minha esposa viesse a
engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe somente uma pequena garrafa
contendo água do oceano.
No regresso, quis desculpar meu
procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomou-me o vidro
das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais o
largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-o
contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.
Momentaneamente despreocupei-me
da exagerada gordura de Bárbara. As minhas apreensões voltavam-se agora para o
seu ventre a dilatar-se de forma assustadora. A tal extremo se lhe dilatou que,
apesar da compacta massa de banha que lhe cobria o corpo, ela ficava escondida
por trás de colossal barriga. Receoso de que dali saísse um gigante, imaginava
como seria terrível viver ao lado de uma mulher gordíssima e um filho
monstruoso, que poderia ainda herdar da mãe a obsessão de pedir as coisas.
Para meu desapontamento, nasceu
um ser raquítico e feio, pesando um quilo.
Desde os primeiros instantes,
Bárbara o repeliu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o ter
encomendado. A insensibilidade da mãe, indiferente ao pranto e à fome do
menino, obrigou-me a criá-lo no colo. Enquanto ele chorava por alimento, ela se
negava a entregar-lhe os seios volumosos, e cheios de leite.
Quando Bárbara se cansou da
água do mar, pediu-me um baobá, plantado no terreno ao lado do nosso. De
madrugada, após certificar-me de que o garoto dormia tranquilamente, pulei o
muro divisório com o quintal do vizinho e arranquei um galho da árvore. Ao
regressar a casa, não esperei que amanhecesse par entregar o presente à minha
mulher. Acordei-a, chamando baixinho pelo seu nome. Abriu os olhos, sorridente,
adivinhando o motivo por que fora acordada:
- Onde está?
- Aqui. E lhe exibi a mão, que
trazia oculta nas costas.
- Idiota! Gritou, cuspindo no
meu rosto. - Não lhe pedi um galho - E virou para o canto, sem me dar tempo de
explicar que o baobá era demasiado frondoso, medindo cerca de dez metros de
altura.
Dias depois, como o dono do
imóvel recusava-se vender a árvore separadamente, tive que adquirir toda a propriedade
por um preço exorbitante.
Fechado o negócio, contratei o
serviço de alguns homens que, munidos de picaretas e de um guindaste,
arrancaram o baobá do solo e o estenderam no chão.
Feliz
e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre
o grosso tronco. Nele também desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu
debaixo de um coração, o que muito me comoveu. Este foi, no entanto, o único
gesto de carinho que dela recebi. Alheia à gratidão com que eu recebera a sua lembrança,
assistiu ao murchar das folhas e, ao ver seco o baobá, desinteressou-se dele.
Estava terrivelmente gorda.
Tentei afastá-la da obsessão, levando-a ao cinema, aos campos de futebol. (O
menino tinha que ser carregado nos braços, pois anos após o seu nascimento
continuava do mesmo tamanho, sem crescer uma polegada.) A primeira idéia que
lhe ocorria, nessas ocasiões, era pedir a máquina de projeção ou a bola, com a
qual se entretinham os jogadores. Fazia-me interromper, sob o protesto dos
assistentes, a sessão ou a partida, a fim de lhe satisfazer a vontade.
Muito tarde verifiquei a
inutilidade dos meus esforços para modificar o comportamento de Bárbara. Jamais
compreenderia o meu amor e engordaria sempre.
Deixei que agisse como bem
entendesse e aguardei resignadamente novos pedidos. Seriam os últimos. Já
gastara uma fortuna com as suas excentricidades.
Afetuosamente, chegou-se para
mim, uma tarde, e me alisou os cabelos.
Apanhado de surpresa, não
atinei de imediato com o motivo do seu procedimento. Ela mesma se encarregou de
mostrar a razão:
- Seria tão feliz, se possuísse
um navio!
- Mas ficaremos pobres,
querida. Não teremos com que comprar alimentos e o garoto morrerá de fome.
- Não importa o garoto, teremos
um navio, que é a coisa mais bonita do mundo.
Irritado, não pude achar graça
nas suas palavras. Como poderia saber da beleza de um barco, se nunca tinha
visto um e se conhecia o mar somente através de uma garrafa?!
Contive a raiva e novamente
embarquei para o litoral. Dentre os transatlânticos ancorados no porto, escolhi
o maior. Mandei que o desmontassem e o fiz transportar à nossa cidade.
Voltava desolado. No último
carro de uma das numerosas composições que conduziam partes do navio, meu filho
olhava-me inquieto, procurando compreender a razão de tantos e inúteis apitos
de trem.
Bárbara, avisada por telegrama,
esperava-nos na gare da estação. Recebeu-nos alegremente e até dirigiu um
gracejo ao pequeno.
Numa área extensa, formada por
vários lotes, Bárbara acompanhou os menores detalhes da montagem da nave. Eu
permaneci sentado no chão, aborrecido e triste. Ora olhava o menino, que talvez
nunca chegasse a caminhar com as suas perninhas, ora o corpo de minha mulher
que, de tão gordo, vários homens, dando as mãos, uns aos outros, não conseguiriam
abraçá-lo.
Montado
o barco, ela se transferiu para lá e não mais desceu à terra. Passava os dias e
as noites no convés, inteiramente abstraída de tudo que não se relacionasse com
a nau.
O dinheiro escasso, desde a
compra do navio, logo se esgotou. Veio a fome, o guri esperneava, rolava na
relva, enchia a boca de terra. Já não me tocava tanto o choro de meu filho.
Trazia os olhos dirigidos para minha esposa, esperando que emagrecesse à falta
de alimentação.
Não emagreceu. Pelo contrário,
adquiriu mais algumas dezenas de quilos. A sua excessiva obesidade não lhe
permitia entrar nos beliches e os seus passeios se limitavam ao tombadilho,
onde se locomovia com dificuldade.
Eu ficava junto ao menino e, se
conseguia burlar a vigilância de minha mulher, roubava pedaços de madeira ou
ferro do transatlântico e trocava-os por alimento.
Vi Bárbara, uma noite, olhando
fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua, larguei o
garoto no chão e subi depressa até o lugar em que ela se encontrava. Procurei,
com os melhores argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a
inutilidade das minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços. Também não
adiantou. O seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo.
Desorientado, sem saber como
proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo
o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais
a conteria.
Mas, ao cabo
de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula
estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.
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